Memória e Interferência
- Arthur Flavio
- 18 de set. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 10 de nov. de 2024
Resenha do filme Santiago (2007) , de João Moreira Salles
Santiago é um documentário dirigido por João Moreira Salles. Nele, acompanhamos a reflexão de um diretor de documentários burguês. Salles havia tentado fazer seu longa em 92, mas como ele mesmo disse: “As minhas ideias eram boas no papel, mas não funcionaram na ilha” assim engaveta o projeto. Mais de uma década depois, o documentarista volta a pensar sobre sua infância, sua casa e seu mordomo. Lançado em 2007, o filme agora nasce com o subtítulo “reflexões sobre o material bruto” e se torna mais sobre Salles, do que de fato sobre Santiago.
O filme começa com imagens melancólicas de uma casa vazia em 3 diferentes momentos. A música melancólica remete a um estilo Noir de investigação, aludindo à investigação de si mesmo e do gênero documentário que Salles fará em seu filme. O diretor então apresenta sua ideia original e indica para o espectador que era assim que o filme começaria em 92. Uma contradição, já que ele também começa assim em 2007. Apresentada a ideia, Salles fala sobre sua motivação de fazer o filme, a memória.
Salles antes de nos apresentar a Santiago, nos apresenta as filmagens que foram feitas para acompanhar a primeira versão do filme. Nesse primeiro ato, o diretor se concentra em apresentar um motivo para o qual a versão de 92 não foi feita. Mas, ao mesmo tempo, falha em dar uma resposta palpável, se preocupando muito mais com o que seria, com a memória que ainda resta filmado de sua versão original.
A tese que será trabalhada no filme inteiro já está posta na mesa. A memória, a lembrança, as motivações e a interferência são partes cruciais de Santiago.
Os planos do filme e sua estética são outros fatores essenciais para a narrativa de Salles. Tudo está em preto e branco com contraste alto entre sombra e luz. Podemos ver imperfeições na pele das pessoas e a escuridão parece tomar conta da maioria das sequências do filme. Especialmente as que foram filmadas em estúdio para servir de acompanhamento para as histórias de Santiago na versão de 92.
Em um primeiro momento, Salles explica isso como sendo parte do roteiro original, uma correlação entre vida e morte, uma ideia que na época parecia original. Mas com a nova versão do filme, sua estética ganha um significado a mais. Para falar desse significado é necessário, antes de tudo, falar sobre o personagem que dá nome ao longa.
O espectador é apresentado a Santiago, o mordomo que trabalhou por mais de 30 anos para a família Moreira Salles, nos 4 minutos de filme. Salles faz questão de começar no primeiro take da primeira gravação que fizeram com ele. Aqui, o espectador dá de cara com um senhor bem de idade no meio de um plano barulhento. Não sonoramente, mas visualmente barulhento.
Santiago é colocado no meio de sua cozinha apertada onde o vemos quase desaparecer em meio a tanta coisa. O senhor vira quase que um objeto, parte imutável de seu apartamento. Um aspecto que não foi pensado por Salles como algo que falasse algo significativo na primeira versão. Segundo ele era apenas uma referência ao diretor japonês Yasujiro Ozu, mas nessa reflexão sobre o material bruto, surge como um dos aspectos mais ressonantes do filme.
Em todas as gravações que Santiago aparece ele está do mesmo jeito. Longe, quase sempre sentado. Nenhuma sequência em primeiro ou médio plano foi realizada para o filme, em nenhum momento vemos sua cara preencher a tela e suas emoções seres destacadas por suas expressões. Vemos apenas um senhor longe, distante de tudo e de todos.
O segundo ato explora essa distância que Santiago está da câmera. Nessas sequências, que ocupam a maioria do longa, conhecemos Santiago em seus últimos anos de vida. Um argentino com descendência espanhola que veio para o Brasil procurando trabalho, completamente obcecado por personagens históricos que morrem bem antes de seu nascimento. O mordomo fala com alegria de seus amigos “fantasmas” indo tão longe a ponto de dedicar mais de três décadas de suas vida a datilografar suas histórias. Sua vida parece ter girado em torno de preservar personagens históricos de realezas desfeitas a milênios.
Ao mesmo tempo, o espectador é convidado a pensar sobre a relação que as fantasias de nobres de Santiago, não se traduz como o motivo de ter passado tanto tempo sendo mordomo de uma família milionária. Alí, na casa da Gávea, Santiago podia experienciar como era viver a vida de luxo que apenas a realeza de seus sonhos vivia.
Quando as filmagens foram realizadas, Santiago já não trabalhava mais para a família Moreira Salles há 6 anos. De toda forma, sua admiração pela família e pela oportunidade que eles lhe deram não poderia ser mais evidente. Quando o espectador começa a ter noção disso, o filme muda. As entrevistas com o mordomo continuam, mas algo mudou. Agora a voz de Salles e suas direções de como agir e como falar cada coisa acompanham cada vez mais a fala de Santiago.
Até que em determinado momento, o mordomo se refere a Salles como “Joãozinho”. O diretor então corta e, com um tom irritado, pede para ele repetir a história, mas não falando seu nome. Esse é o começo do terceiro ato do filme. A revelação do porque Salles sentir que algo estava errado na montagem de seu filme em 92. E esse motivo, era simples. João Moreira Salles não se permitia ser Joãozinho. Ao tentar o máximo possível retratar a realidade de Santiago, ele acabou esquecendo que a classe social existe.
O que vemos então jamais poderia ser o real. O homem enterrado no meio do barulho visual não é Santiago. Não é a essência de um homem trabalhador, estudioso e apaixonado pela arte que estamos vendo, mas sim, o empregado respondendo o filho do patrão. Apenas. Santiago em toda sua sabedoria e experiência é reduzido ao mero seguidor de ordens quando se depara com a ordem do filho de alguém que nem mesmo é mais seu chefe. A interferência de Salles no filme é muito potente. E é assim que o terceiro ato do filme segue.
O complemento da resolução, o motivo do porque esse filme não ter existido na época que foi gravado e a culpa de Salles por não ser capaz de entender isso na época. Santiago morre 2 anos depois da gravação. Agora, arrependido de não ter percebido como o tratava, João apenas tem 30 mil páginas datilografadas por Santiago e 9 horas de filmagem.. As páginas, cheias de personagens históricos que, sem se importar com o que fizeram em vida, o tempo os esqueceu.
Salles parecia saber disso. Quando escolhe filmar Santiago de certo modo, a memória falha em se lembrar o motivo. Mas o mordomo parecia saber, deixando suas 30 mil páginas para ele em seu testamento. Todas as páginas contendo milhares de história sobre pessoas que não existem mais, assim como Santiago. Mas preservadas no papel, onde podem viver por mais algum tempo.
No fim, Santiago (2007) é sobre isso. A preservação de alguém. A memória filmada de quem ela parecia ser. Uma carta para os irmãos Moreira Salles e um último respiro para Santiago. Que, embora não real, ainda vive pelo filme.
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